Para ouvir:

https://youtu.be/jy4SnovEXt0?si=zQ9zJcmRbcGBPkHn

Quantos limites foram quebrados naquela noite? As mãos de feiticeira ainda emanavam um vago odor de sangue velho. Ela desviou o olhar do homem ao seu lado. O pensamento pesou em seu coração “... Eu sou um monstro”. Havia apostado muito mais do que seu vitae naquela incursão conturbada, cheia de dores e sacrifícios, mas valeu a pena. Olenska fitou Alex com tanto afeto. O tempo em que ele esteve fora havia levado parte de seu humor, como se aquele homem lhe desafiasse a reconhecer sua própria humanidade. Ambos estavam alquebrados física e emocionalmente, mas juntos.

— Muita coisa aconteceu nestes últimos tempos… - Seu olhar pousou no homem ao seu lado. - Nós precisamos conversar.

A biblioteca abandonada, cheirava a mofo, poeira e tempo, protegendo os vampiros nesse reencontro. Ela tocou a face, arruinada pelas queimaduras solares, dele; a própria bruxa carregava cicatrizes profundas do encontro mais recente com a Sociedade*. Trocaram um olhar intenso, não viam as dores, mas a alegria de novamente estarem seguros.

— Já que você nos lembrou de tempos mais simples… Vem comigo hoje a noite.

O vento soprou gélido pela sacada de pedra clara e esquadrias de metal.  A silhueta de alguém debruçada sobre o peitoril observando a rua abaixo. Luzes da cidade abaixo misturam-se ao frenesi da vida noturna. Pessoas retornando aos seus lares, jovens procurando prazeres perigosos, e… claro, monstros espreitando a vida seguindo seu curso. Olenska fitava uma boa parte da cidade de sua sacada. Como sempre ela havia despertado pouco depois do sol se pôr. Menos disposta que antes, mas talvez esse fosse o preço de seu pecado. Havia trazido uma criança para a noite eterna, e esse pensamento não deixaria de atormentá-la tão cedo. Ela colocou os braços ao redor do corpo. Não para se proteger do ar noturno, mas por um vazio interno. Seus cabelos cacheados voavam com a brisa, inquietos como seus pensamentos. Ela trajava um fino hobby de seda creme, que caia sobre a pele negra com uma suavidade sobrenatural. Fora daquele pequeno apartamento, ela era a senhora entre os Feiticeiros, uma Bruxa com sede de vingança e a danação de seus inimigos… Mas ali, observando a vida, sentia-se petrificada com o sangue em suas mãos. Muitos haviam perecido por suas ações e outros tantos, certamente, teriam o mesmo fim. Por puro costume a vampira inspirou profundamente. Que criatura ela estava se tornando? Três anos naquela cidade e sentia que o mundo girava mais rápido do que conseguia compreender. Alguns dias passaram desde que a noite do reencontro aconteceu. Seu contato com a pequena Lydia era discreto, manteve a garota na sala da Innocence, por precaução. Mas isso era provisório. Tentou se recuperar e manter Alex perto, todas as noites que a maldição dele lhes permitia. Havia as questões na Capela e a constante pressão de Viktor sobre os “visitantes” que hospedavam. Sua mente voava por estes pensamentos. Imersa nesses questionamentos, sentiu alguém enlaçada pelas costas. Seus braços cobertos de tatuagens a protegem do clima. Os lábios frios tocaram sua orelha, sussurrando.

— Ia perguntar se você dormiu bem, mas essa carinha séria… Qual o problema?

Alex era como a calmaria em meio a tempestade. Ela relaxou sob seu abraço. Deixando a cabeça pender em seu peito, onde não havia uma única batida de coração. Seu companheiro ainda estava fraco, o corpo alquebrado e ferido pelo sol. Mas Olenska via além da carne, era a alma daquele homem que a ancorava ao mundo. O rapaz ajeitou uma mecha rebelde dos cabelos dela entre seus dedos. A mulher suspirou novamente.