“Ela já tem dezoito anos, já não está na hora de haver perdão entre vocês!?”

A figura silenciosa sentada à mesa mesa, diante de um cálice intocado, fitou a senhora a sua frente. Os traços similares, nariz testa, como um reflexo carcomido pelo tempo. Porém, e ela sabia, nunca teria aquelas rugas, o tempo não lhe corroeria o exterior... ainda assim a fome a marcava por dentro. Seus olhos, talvez a grande diferença entre as duas, fitaram gélidos a mulher mais velha.

Numa voz calma e distante, com a condescendência de uma instrutora, sem pausas ou suspiros. Apenas a realidade.

“Não há o que perdoar, nem esquecer. Oske é minha criança, mãe. Ela irá, cedo ou tarde compreender que nosso afastamento é melhor para ela.” Os dedos cobertos de anéis dançaram sobre a beirada do cristal onde o licor estava imaculado.

O desagrado da velha senhora preencheu o ambiente.

“Lembro de ter lhe dado mais afeto que isto, criança. Oske sente sua falta... o que quer que tenha havido entre vocês, deve achar conforto no sangue que compartilham.”

Sangue... Instintivamente sentiu o aperto na garganta. O queimar seco da sede, corroendo as entranhas. Era exatamente por isso. Mas como lhe explicar!? Não havia explicação. Pousou a mão sobre a mesa. O cheiro da angústia que exalava da figura idosa, fez suas narinas se dilatarem por um momento. Então a mente se fixou no vidro colorido do cálice a sua frente. “Não colheria do seu sangue...” A certeza renovou seu ânimo.

“Com todo o respeito que lhe devo, Condessa, não há nada a debater sobre este assunto. Se não lhe agrada continuar como preceptora...” A sombra do medo passou pelo olhar da senhora. O efeito esperado. “... cuidarei para que outro faça isso. Manterei as contas dos estudos e o fundo para as despesas. Fora isso, Oskana tem a liberdade de fazer com seus dias o que quiser.”

“Não vou abandonar minha neta a própria sorte!”

Ela sabia. Confiava no laço de sanguíneo, mais que no afeto... Oske era a última de sua linhagem. Não importava o que acontecesse, a moça seria protegida. Fitou o velho relógio na parede. Um modelo antiquado com ponteiros e carrilhão do século dezenove. Presente, de um passado menos amargo. Levantou-se. Beijou a mão da outra, com respeito.

“Já é tarde. Nos veremos no meu próximo retorno a Budapeste.”

...

O parque estava vazio, tanto melhor, o cheiro dos passantes irritava seu humor. Não gosta de brincar com os sentimentos da velha condessa. Ainda assim, a vida dela era preciosa demais, para que emoções colocassem em risco seu legado. Pegou um cigarro elétrico e ascendeu. Aprendera a disfarçar sua estranheza fazendo atos mundanos, como segurar copos cheios até a metade, ou pratos meios cheios de comida. Ninguém se incomoda se tudo parece meio mexido. Levou o cigarro aos lábios. A fumaça perfumada vagou na noite fria e escura.

Passos firmes fizeram o olhar dela pousar na figura de um homem mais velho, o terno bem cortado estava um pouco datado, ainda assim era mais moderno que as roupas de outros como ele. Saudou educada.

— Boa noite, meu caro. Em que posso lhe ser útil!? — Quando o telefone tocou, duas noites atrás, e o encontro foi marcado, temia o que ele diria, mas já estava feito. Não havia mais volta.

— Boa noite, minha querida... Podemos dar uma volta? — Ele fez um sinal para que seguissem caminhando. Sempre acompanhado de sua bengala. Um adereço que representava bem o seu dono, aparentemente inofensivo e antiquado, mas, na verdade, perigoso e traiçoeiro.

Ela guardou o aparelho, sob o olhar desaprovador do homem mais velho. Seu senhor... Ou o mais próximo que tinha de um. Caminhou ao lado dele, com as mãos nos bolsos do casaco pesado.

— É bom vê-lo novamente, meu querido. Tudo correu como esperado em sua nova cidade?

— Também é um conforto revê-la, criança. Este tempo distante foi bem aproveitado, mas não prazeroso. Espero que tenha resolvido seus negócios aqui. Pois, temo, não terá mais tempo de fazê-lo. Partimos de Budapeste amanhã a noite.

Era isso. Olhou uma vez mais para o parque. Sentiu o ar de Budapeste uma última vez. Balançou a cabeça resignada.